O teatro dentro do teatro nas peças de Jean-Pierre Martinez

O teatro é uma arte que sempre questionou a sua própria natureza. O que comumente se chama de “Teatro dentro do Teatro” é um campo de investigação fascinante e complexo que Jean-Pierre Martinez explorou em várias de suas comédias.

1. As principais peças dentro desse gênero

O “Teatro dentro do Teatro” é um dos gêneros que Jean-Pierre Martinez explorou com frequência, sempre com humor, é claro. Ele já menciona esse conceito em 2016, em sua peça No Fim da Linha:

Jornalista – E se escrevêssemos sobre um autor que perdeu a inspiração?
Dramaturgo – Já vejo… Uma garota bate à sua porta, dizendo que é jornalista…
Jornalista – E por que não?
Dramaturgo – O teatro dentro do teatro… Eu havia prometido a mim mesmo que não cairia tão baixo.

Todos os temas e motivos do “Teatro dentro do Teatro” são desenvolvidos nas peças de Jean-Pierre Martinez, oferecendo uma reflexão sobre o processo de criação, ao mesmo tempo em que exploram todas as facetas do humor: comédia dramática em No Fim da Linha, farsa em O reverso do cenario, comédia política em Apenas um Instante Antes do Fim do Mundo ou Quarentena

 

Um grupo de atores se prepara para entrar em cena em uma peça sobre as últimas horas de vida de Molière. Nada está pronto e as dificuldades estão se acumulando. Até mesmo o roubo da arrecadação do dia… Deveriam cancelar a função e precipitar assim a ruína deste teatro à beira da falência, ou jogar a qualquer custo?

Três indivíduos que não se conhecem são convocados para participar de um júri popular. Pelo menos foi o que lhes foi dito. Mas o lugar onde foram reunidos não é um tribunal. Aprendem que estão lá para decidir em conjunto como lidar com as consequências de uma catástrofe inevitável que vai atingir o mundo num futuro muito próximo. As opiniões divergem e muitas reviravoltas reavivam o debate. Ao longo deste espetáculo imersivo, o público também será convidado a expressar a sua opinião para guiá-los nas suas escolhas, para que eles tomem a melhor decisão possível para enfrentar a pior das situações imagináveis…

Num lugar fechado e misterioso, que poderia ser um asilo de loucos... ou o teatro do mundo, encontram-se detidos alguns párias que perderam a Fé. A Fé em Deus, mas também a crença em todos os princípios sobre os quais se baseia a nossa sociedade. E se o próprio criador deixasse de acreditar em sua criação? É urgente motivar novamente esses descrentes antes que um ceticismo contagioso provoque o colapso geral do sistema.

Breves de palco de Jean-Pierre Martinez Comédia de esquetes Um teatro também pode ser o palco onde ocorrem histórias inusitadas que têm …

Vicente e Antonio são dois atores que antes eram amigos, mas não se veem há anos. Com o tempo, sua amizade se transformou em uma rivalidade tanto profissional quanto amorosa. Um deles convidou o outro para o palco de um teatro para reconectar com essa amizade que se foi com a juventude. Essa tentativa de reconciliação se transformará em um confronto antes de possivelmente levar a um projeto inesperado.

Para Fred e Sam, esta primeira participação no Festival de Avinhão é um sonho que finalmente se torna realidade. Mas em Avinhão, os sonhos às vezes se transformam em pesadelos. Logo após a primeira representação, uma crítica destrutiva desencoraja o público de testemunhar esta obra que já havia começado mal. À beira do naufrágio e assumindo todos os riscos, esses dois simpáticos perdedores optam por uma solução radical… Uma homenagem a todos esses atores na sombra em busca de um pouco de luz e um elogio ao fracasso quando é magnificado pela paixão…

Passaram sete anos desde que todos os teatros foram encerrados devido à crise sanitária. Três presumíveis actores chegam ao palco para um casting. A menos que se trate de uma leitura pública. Ou mesmo a estreia do espectáculo… O problema é que eles não têm o texto da peça. O autor ainda não o escreveu. Vamos ter de improvisar…

Mesmo antes de o pano se levantar, os atores ensaiam uma última vez. No entanto, um evento inesperado compromete o início do espetáculo. Uma alegre farsa sobre o mundo do teatro...

Contagem regressiva... Um casal acaba de comprar a casa dos seus sonhos, a um preço surpreendentemente baixo. O que terá acontecido naquela casa para que ninguém a quisesse comprar antes? Os antigos proprietários morreram ali em circunstâncias tão dramáticas quanto misteriosas… Um conto filosófico em forma de contagem regressiva sobre o destino tragicómico da humanidade em geral, e do casal em particular.

2. Temas e motivos recorrentes

2.1. A identidade e a realidade

Um tema central do “Teatro dentro do Teatro” é a exploração da identidade dos personagens e da realidade. As fronteiras entre o real e a ficção tornam-se difusas, levando o público a questionar o que é verdadeiro e o que não é.

Personagens em dúvida

Os personagens que interpretam papéis dentro de um espetáculo dentro do espetáculo podem enfrentar uma crise de identidade. Às vezes, perguntam-se quem realmente são e qual é seu papel no grande teatro da vida.

Trecho de O reverso do cenario,

Maurício – Vocês são todos impostores! Estão atuando em uma peça de teatro!
Sánchez – Não somos verdadeiros policiais, Comissário?
Ramírez – O que é toda essa comédia, Cortina?
Maurício – Também não vamos fazer um drama disso…
Ramírez – Sim ou não, você é o verdadeiro autor desta peça que nunca foi encenada?
Maurício – Não, mas sou o autor desta farsa que estamos representando.
Esmeralda – Teatro dentro do teatro agora… Isso já não foi feito demais?

Essa temática também está no centro de Breves de paco, com pequenas cenas protagonizadas por atores e autores que, em poucas falas, exploram as múltiplas questões que os inquietam.

Os limites da realidade

O “Teatro dentro do Teatro” frequentemente embaralha as fronteiras entre o mundo da ficção e o mundo real. Os espectadores são convidados a questionar o que é real, criando assim um efeito de espelho inquietante.

A peça Apenas um Instante Antes do Fim do Mundo brinca com os códigos da representação teatral e termina da seguinte maneira:

Alex – Então, você acha que estamos no teatro agora?
Max – Só faltava essa…
Fred – Mas isso é impossível, todos os teatros estão fechados há anos por causa da pandemia.
Sam – Quase todos eles, melhor dizendo. Mas alguns resistem. Sem o conhecimento das autoridades sanitárias e policiais.
Alex – Então… estávamos fazendo uma peça de teatro?
Sam – E a peça terminou. Vão nos aplaudir, ou pelo menos espero, vocês voltarão aos seus camarins e depois poderão ir para casa. Ninguém vai morrer. Bem, não hoje. O espetáculo acabou.
Fred – Então, você não é policial?
Max – Mas então… quem é você?
Sam – Eu sou o diretor.
Alex – Então, tudo isso era mentira…
Sam – Não. Era mentira e verdade ao mesmo tempo. Era teatro.
Max – Mas nós não somos atores!
Sam – Vocês foram selecionados para participar de um espetáculo improvisado. Todas essas pessoas são espectadores.
Fred – Então você é quem desafia a lei? Todas as representações teatrais estão estritamente proibidas.
Sam – Faço parte de uma organização secreta que tenta reviver clandestinamente o espetáculo que um dia foi chamado de ao vivo
Alex – E onde estamos?
Sam – Estamos no Teatro… (Aqui se menciona o nome do teatro onde a peça está sendo apresentada).
(Um tempo.)
Fred – O teatro… Faz tanto tempo que não vamos lá…
Max – Já nem sabemos mais para que serve.
Sam – Para nada… Para refletir…
Max – Refletir sobre o quê?
Sam – Sobre o sentido da vida, por exemplo…
Fred – É verdade que, depois de tudo isso, acho que verei a vida de outra maneira.
Sam – Se morrermos daqui a um mês ou em trinta anos, se morrermos individualmente ou todos juntos, no fim, o que importa?
Fred – A questão é saber o que queremos fazer com o resto da nossa vida.
Max – E qual é a resposta certa?
Sam – No teatro, não há respostas certas. Só há boas perguntas.
Alex – De qualquer forma, nunca devemos deixar de viver por medo de morrer.

Na peça Quarentena, quatro pessoas encontram-se, contra a própria vontade, em quarentena dentro do que acaba por ser um teatro abandonado. Atrás de uma janela imaginária, outras pessoas (os espectadores) as observam.

2.2. A criação artística: o processo de criação em mise en abyme

O processo de criação artística está frequentemente no centro do “Teatro dentro do Teatro”. Os dramaturgos exploram os desafios e as alegrias da criação teatral, oferecendo um olhar para os bastidores do mundo do espetáculo.

El proceso de creación en mise en abyme
Os dramaturgos utilizam o espetáculo dentro do espetáculo para refletir sobre o processo de criação artística. Os atores ensaiam, os diretores dirigem, e o público observa todo o processo, criando uma fascinante metateatralidade.

A peça dentro da peça: L’Etoffe des Merveilles
Com uma adaptação livre de O Retábulo das Maravilhas de Cervantes e sua associação com outros textos, Jean-Pierre Martinez propõe uma mise en abyme poética, complexa e vibrante.

Trecho do prólogo:

O Retábulo das Maravilhas é um texto muito breve. Para enriquecer ainda mais a proposta teatral, o precedi com um prólogo de minha autoria, no qual aparece Cervantes, e integrei também uma adaptação de um conto de Don Juan Manuel. Além disso, acrescentei um epílogo no qual Dom Quixote aparece no célebre episódio dos moinhos. Existe, de fato, uma ressonância invertida entre O Retábulo das Maravilhas, que transforma o ilusionismo em um meio para que o pária engane o burguês, e a luta contra os moinhos, que transforma a imaginação alucinatória em um meio para que o nobre caído e desiludido escape de uma realidade medíocre e alcance um destino heroico. Se a vida é um sonho, como diz Calderón, cabe a cada um aceitar que esse sonho não passe de uma ilusão alienante ou tentar sublimá-lo em um sonho libertador. O escritor, por sua vez, faz surgir na página em branco, pela magia da escrita, aquelas maravilhosas nuvens de que fala Baudelaire, que despertarão em seus leitores o desejo de erguer o olhar para o céu. E que permitirão ao autor alcançar a eternidade.

 

Os ensaios de uma peça em cena

A peça O reverso do cenario começa com o ensaio de um drama russo intitulado “O Dia Exato Antes da Noite”. A mise en abyme transforma-se em uma farsa e uma paródia do pequeno mundo do teatro.

 

A quebra da quarta parede

A quarta parede é um conceito teatral que representa uma barreira imaginária entre o palco e o público. A quebra da quarta parede ocorre quando essa barreira é rompida, os atores interagem diretamente com a plateia ou elementos do mundo real são introduzidos no universo da peça.

Jean-Pierre Martinez experimentou diversas formas de quebra da quarta parede em suas obras:

  • Interação com o público e votação do público: os espectadores votam para decidir se o fim do mundo deve ou não ser revelado. Um desfecho surpreendente revela a verdade em Apenas um Instante Antes do Fim do Mundo.
  • Interpelação e participação do público: os atores pedem ajuda aos espectadores enquanto estão amarrados no palco, em Há Algum Crítico na Sala?.
  • Atores entre o público:
  • A sala como espaço de jogo: em Há um piloto abordo?, a peça começa e termina com uma mise en abyme. No meio da peça, um ator atravessa a plateia como se estivesse dentro de um avião e se dirige aos espectadores como se fossem passageiros.

Os desafios e as alegrias da criação

O “Teatro dentro do Teatro” pode ser uma ferramenta para que os dramaturgos expressem os desafios e as recompensas da criação artística. Os conflitos, os fracassos e os triunfos frequentemente são levados ao palco.

A peça No Fim da Linha tem como tema central a falta de inspiração de um autor dramático.

 

2.3. A metateatralidade: Reflexão sobre o teatro como arte

O teatro como reflexo da vida

A metateatralidade questiona a fronteira entre realidade e ficção: o público é convidado a refletir sobre a distinção entre o mundo no palco e o mundo real. Essa temática está no centro da peça Apenas um Instante Antes do Fim do Mundo.

A encenação da arte dramática
Os espetáculos dentro dos espetáculos são uma oportunidade para criticar, parodiar ou celebrar o teatro como arte. Os dramaturgos frequentemente questionam as convenções teatrais.

Os autores
O personagem de Molière é uma fonte inesgotável de inspiração para os dramaturgos. Jean-Pierre Martinez oferece uma versão original em A Representação Não Está Cancelada.

Os atores
As rivalidades entre atores estão no centro da peça Cara ou Coroa.

Os críticos
As peças dedicadas aos críticos de teatro são mais raras. Há Algum Crítico na Sala? propõe uma reflexão sobre a responsabilidade dos críticos diante do compromisso de uma jovem companhia teatral.

Mesmo O reverso do cenario já apresentava uma crítica teatral, Edmonde Ratelier, da revista Teledrama, cujas falas são particularmente mordazes: “Ah, não, vocês não vão cancelar! Eu já tinha escrito minha crítica antecipadamente para ganhar tempo.”

A sala de espetáculos
Nas peças Quarentena e Há Algum Autor na Sala?, Jean-Pierre Martinez reflete sobre o lugar do espetáculo ao vivo durante e após a pandemia, bem como sobre a sobrevivência das salas de teatro após essas crises.

Um tema que se inscreve na tradição teatral

A ideia de incluir um espetáculo dentro de outro espetáculo remonta à Antiguidade. Peças gregas, como Lisístrata, de Aristófanes, já continham elementos metateatrais. No entanto, foi apenas muito depois que esse gênero encontrou seu espaço no teatro ocidental.

Hamlet, de William Shakespeare: A peça dentro da peça

Shakespeare utilizou o “Teatro dentro do Teatro” de forma magistral em Hamlet (publicado em 1603). A célebre cena da Tragédia de Gonzago é uma peça representada pelos personagens dentro da própria obra.

A vida é sonho, de Calderón (1635)

Esta peça oferece uma reflexão sobre ilusão e realidade, o jogo e o sonho.

A Ilusão Cômica, de Corneille (1635)

A Ilusão Cômica baseia-se no motivo do teatro dentro do teatro e multiplica os níveis de representação.

O Impromptu de Versalhes, de Molière (1663)

Em O Impromptu de Versalhes, Molière coloca em cena os atores da companhia do Palais-Royal ensaiando sua última criação poucas horas antes de apresentá-la ao rei. É uma oportunidade para demonstrar seu talento como imitador, parodiando os atores do Hôtel de Bourgogne, homenageando (ou ironizando) os atores de sua própria companhia, criticando os autores que escrevem peças contra ele e explicando a essência da comédia.

Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello (1921)

Pirandello leva ao extremo a realidade teatral em Seis Personagens à Procura de um Autor. Os personagens questionam sua própria existência, desafiando as expectativas do público.

A Repetição ou O Amor Castigado, de Jean Anouilh (1950)

Esta peça se passa durante um ensaio teatral, oferecendo um olhar sobre o processo de criação artística.

Ver também : Eurídice, Colombe, Não Acordem Madame


Outras referências

  • O Verdadeiro São Genésio, de Jean de Rotrou (1646).
  • Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare (1600).
  • A Ilha dos Escravos, de Pierre de Marivaux (1725).
  • Os Atores de Boa Fé, de Pierre de Marivaux (1755).
  • Lorenzaccio, de Alfred de Musset (1834).
  • Não se Brinca com o Amor (1834). 
  • Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand (1897). 
  • O Círculo de Giz Caucasiano, de Bertolt Brecht (1945).
  • As Criadas, de Jean Genet (1947).
  • Kean, de Jean-Paul Sartre (1953).
  • O Impromptu da Alma, de Eugène Ionesco (1955).
  • O Impromptu do Palais Royal, de Jean Cocteau (1962).
  • Catástrofe, de Samuel Beckett (1982).
  • Frédérick ou O Boulevard do Crime, de Éric-Emmanuel Schmitt (1998).
  • Edmond, de Alexis Michalik (2016)
 
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