A ficção científica no teatro de Jean-Pierre Martinez

Foi no século XX que a ficção científica começou a desenvolver-se como um gênero distinto no teatro.

Autores visionários como Karel Čapek, autor da célebre peça R.U.R. em 1920, introduziram conceitos inovadores como os robôs e a inteligência artificial nos palcos. Com o tempo, outros dramaturgos, como Ray Bradbury ou Jean Tardieu, também contribuíram para o teatro de ficção científica, explorando mundos futuristas, tecnologias avançadas, sociedades distópicas e dilemas éticos.

Várias peças de Jean-Pierre Martinez e inúmeros sketches situam-se num futuro mais ou menos próximo, o que permite explorar, sempre de forma humorística, questões filosóficas, éticas ou sociais. As obras apresentam tonalidades mais ou menos sérias, que vão desde a grande farsa até à tragicomédia.*

1. As peças de ficção científica

Três indivíduos que não se conhecem são convocados para participar de um júri popular. Pelo menos foi o que lhes foi dito. Mas o lugar onde foram reunidos não é um tribunal. Aprendem que estão lá para decidir em conjunto como lidar com as consequências de uma catástrofe inevitável que vai atingir o mundo num futuro muito próximo. As opiniões divergem e muitas reviravoltas reavivam o debate. Ao longo deste espetáculo imersivo, o público também será convidado a expressar a sua opinião para guiá-los nas suas escolhas, para que eles tomem a melhor decisão possível para enfrentar a pior das situações imagináveis…

De verdade e de brincadeira de Jean-Pierre Martinez Se às vezes é difícil distinguir a verdade da mentira, podemos aproveitar para misturá-las com …

Num futuro onde o suicídio assistido foi substituído por uma reciclagem voluntária, um homem e uma mulher, que se conheceram pouco antes do seu recondicionamento, reaparecem na casa totalmente comum do casal já obsoleto que estão destinados a substituir. Restará algum amor quando tudo foi esquecido?

Numa Terra tornada inabitável devido ao aquecimento global, uma humanidade moribunda está a viver as suas últimas horas. Dois homens e duas mulheres estão prestes a partir numa nave espacial em direção a um planeta desconhecido que poderá servir como o seu último refúgio. A missão destes quatro "escolhidos": dar à Humanidade a oportunidade de se perpetuar depois de ter causado a sua própria extinção através da sua loucura autodestrutiva. Mas será que tal humanidade realmente merece ser salva? Nem todos concordam...

Cinco pessoas que não se conhecem e que não têm nada em comum acordam presas num local desconhecido. Quem as trouxe ali e por quê? A chegada dos dois sequestradores traz mais perguntas do que respostas... Deixando de lado as suas diferenças, os reféns são obrigados a priorizar o colectivo para esperar chegar ao prolongamento. Tudo isso enquanto evitam cuidadosamente o fora de jogo...

Em uma possível pré-história que talvez esteja por vir, Sapionces e Neandertais convivem em harmonia. Mas duas espécies humanas, não é porventura demais?

Se dois são companhia e três são multidão, com quatro um está demais nesta louca comédia espacial! Quatro passageiros que nada têm em comum participam de uma viagem turística ao espaço. A convivência entre eles está dentro da normalidade, até que a torre de controle informa que, devido a um vazamento de oxigênio, eles precisarão retornar imediatamente. Com o pequeno inconveniente de que não haverá oxigênio para todos eles. Um deles deve se sacrificar, do contrário, todos morrerão. Eles têm uma hora para decidir quem será o herói ou o assassino… O relógio está andando.

Pedro, um pesquisador, acaba de encontrar o soro da vida eterna. Consciente das consequências imprevisíveis de tal descoberta, está prestes a desistir de torná-la pública. No entanto, sua esposa, que sonha em preservar sua juventude para sempre, e seu amante, que deseja viver eternamente, não estão dispostos a fazer tal sacrifício...

Um casal de astronautas dirige-se a Marte com o objetivo de estabelecer uma colónia e lançar as bases de uma nova Humanidade... mais humanista. Após um misterioso acidente, esta viagem espacial transforma-se numa jornada no tempo... Entre um futuro apocalíptico e um passado que carrega as sementes das catástrofes por vir, pode ser tentador querer reescrever a História... e por que não a Bíblia!

Alguns sketches também exploram temas de ficção científica (lista não exaustiva):
Desfase horário, Céu verde, Tempo perdido, Kushim, Travelling, Efeitos secundários, Trocas padrão, A cores.

2. Os temas da ficção científica

Jean-Pierre Martinez explora os temas clássicos da ficção científica, mas sempre subvertendo os códigos do gênero para acentuar os absurdos da nossa sociedade, dos nossos comportamentos e das nossas crenças.

 

Exploração do espaço e mundos futuristas

Na peça Um pequeno passo para uma mulher, um salto para trás para a Humanidade…, o objetivo é fundar uma nova humanidade em Marte.

Brian – O que Objetivo Marte propõe é começar do zero. Em outro lugar. E esse lugar é o planeta vermelho. Meus amigos, vamos fundar um novo mundo. Uma nova civilização. Um novo homem.

O sketch Desfase horário (Breves do Tempo Perdido) apresenta um cliente de uma companhia aérea que deve embarcar em um foguete:

Ela – Desta vez, chegou a hora. Informam-me que seu foguete está prestes a decolar. Não vou me despedir. Quando voltar, provavelmente já não estarei neste mundo. Agora estou viajando pelo sistema solar. Quase não há desfase anual. Pelo menos, é menos cansativo.
Ele – Principalmente quando se tem filhos…
Ela – Você os deixa na creche, e quando volta do trabalho, já terminaram Medicina… Então, boa viagem!

Distopias e utopias futuristas

Na peça Depois de Nós, o Dilúvio, a Terra não passa de um imenso oceano, e a temperatura do ar atingiu vários centenas de graus. Dois homens e duas mulheres estão prestes a embarcar em uma nave espacial rumo a um planeta desconhecido que poderia servir-lhes como último refúgio. No entanto, os quatro “escolhidos” começam a se questionar: A humanidade merece perpetuar-se depois de ter destruído seu próprio planeta?

Os personagens em um contexto de ficção científica

1. Heróis e heroínas atípicos

No teatro de Jean-Pierre Martinez, não há super-heróis nem super-heroínas. São personagens comuns, com suas qualidades e defeitos, enfrentando eventos extraordinários. Na peça Um pequeno passo para uma mulher, um salto para trás para a Humanidade…, os dois protagonistas são apresentados como um “casal heroico que lançará as bases de uma autêntica cidade marciana”. Mas, desde os primeiros diálogos, fica claro que este casal está longe de ser um modelo ideal, e muito menos heroico.

2. Extraterrestres e outros seres fantásticos

Na peça Fora de Jogo, dois extraterrestres tomaram forma humana e dialogam com os humanos que abduziram. Como em todas as peças de Jean-Pierre Martinez, a ironia predomina nesses primeiros intercâmbios:

Alex – Marcianos…? Não, mas estão zombando de nós! Pelo menos poderiam ter se esforçado um pouco mais nos efeitos especiais.
Fred – Com certeza é para um canal de baixo orçamento.
Manu – Eles são exatamente como nós!
Carla – Não pedimos que fossem verdes com antenas no lugar dos olhos, mas um pouco de esforço, não?
Manu – Sabemos bem que os extraterrestres não podem ser exatamente iguais aos humanos!
Alpha – De fato. Não somos como vocês.
Ômega – Nem de longe. Vocês se surpreenderiam.
Alpha – Apenas assumimos uma aparência humana para não assustá-los demais.
Ômega – E aprendemos o seu idioma para poder nos comunicar com vocês.

 

Nos sketches de Jean-Pierre Martinez, os extraterrestres observam nossas ações com perplexidade, destacando nossos costumes estranhos e, acima de tudo, nossas contradições.

As ferramentas da exploração e das viagens no tempo

A Arca em Depois de Nós, o Dilúvio

“Este foguete é um protótipo. Ele é impulsionado por reatores que utilizam uma tecnologia completamente nova, supostamente capaz de nos fazer viajar à velocidade da luz.”

O sketch Tempo Perdido (em Breves do Tempo Perdido) apresenta dois arqueólogos do futuro que descobrem um relógio:

Um – Você acha que este aparelho indicava a hora?
Dois – Quem sabe…
Um – Mas para que serve um aparelho que indica o presente? É como uma placa dizendo “Você está aqui”. Isso já sabemos!
Dois – Nós, sim…
Um – Uma civilização primitiva que precisava de máquinas para se localizar no presente?
Dois – É uma hipótese.
Um – Você imagina? Acordar no meio da noite e nem saber que horas são. Ter que olhar para uma máquina para saber se já é hora de se levantar ou não…
Dois – Fazemos um trabalho fascinante…
Um – E para voltar no tempo, como faziam?
Dois – Talvez girassem os ponteiros ao contrário.
(O primeiro tenta girar os ponteiros ao contrário, sem sucesso.)
Dois – Não, eles só giram em um sentido. Pelo visto, essas pessoas só podiam viajar para o futuro.
Um – Sem marcha à ré, imagine! Nenhuma margem para erro…
Dois – Deve ter sido uma civilização muito primitiva.

No sketch Travelling (Morrer de Rir), um homem visita uma agência de viagens para escolher seu próximo destino no tempo.

Realidades alternativas

Na peça Pré-histórias Grotescas, duas espécies humanas, os Sapionces e os Nandertais, coexistem em harmonia num futuro que lembra a pré-história.

Jacqueline – Vocês é que estão certos… Uma vida simples… Uma alimentação saudável… Às vezes, me pergunto o que a civilização realmente trouxe de positivo para nós, os Nandertais… (O celular toca, e ela atende.)
Jacqueline – Edouard? Não, estou na caverna com os Sapionces… Vou desligar porque aqui dentro o sinal não é bom… Você vem? Certo, até já… (Guarda o celular.)
Jacqueline – Desculpem… A primeira coisa que eu jogaria fora, se tivesse que voltar a ser uma selvagem como vocês, seria o meu celular…

3. O discurso subjacente

Exploração de questões filosóficas e éticas

Os avanços tecnológicos e biotecnológicos

Na peça Depois de Nós, o Dilúvio!, os personagens refletem sobre a realidade de seus conhecimentos.

Eva – En la Terra, tudo parecia simples porque milhares de gerações nos transmitiram sua experiência para distinguir as plantas comestíveis das venenosas, os animais inofensivos dos perigosos, as regiões habitáveis das inabitáveis…
Eurídice – Teremos que reaprender tudo. O perigo estará por toda parte. Cada passo que dermos será um salto no desconhecido. E como somos apenas quatro, não teremos direito ao erro.
Eva – Fomos selecionados por nossas competências em medicina, aeronáutica, astrofísica, biologia… Mas em um mundo totalmente novo e possivelmente hostil?
Orfeu – Sabemos coisas. Não estamos partindo do nada. Não somos homens pré-históricos.
Eva – Nosso conhecimento é puramente teórico. De que nos serve saber como funciona um carro, um computador ou um telefone se não tivermos mais uma indústria para produzi-los?
Eurídice – Teremos que começar do zero. Aprender a construir uma cabana, caçar com arco e flecha, fazer fogo com duas pedras, iluminar-nos com tochas…
Adão – E os homens pré-históricos sabiam muito mais do que nós sobre isso.
Eva – Depois de duas ou três gerações, nossas belas lembranças do mundo anterior, completamente inúteis, se transformarão em histórias fabulosas que nossos descendentes acabarão esquecendo.
Adão – Ou que começarão a distorcer e embelezar para criar uma nova Bíblia.

Na peça Um Breve Instante de Eternidade, um cientista afirma ter descoberto o soro da vida eterna e analisa as consequências de sua descoberta.

Pedro – Há anos trabalho neste projeto. Tive tempo de refletir sobre as consequências que a imortalidade poderia ter para a humanidade.
Delphine – E…?
Pedro – Acho que seria um inferno…
Vicente – Um inferno? Você está exagerando.
Pedro – Sem falar nas mudanças econômicas e sociais, que seriam enormes, não haveria mais renovação das gerações. Para que ter filhos se vivemos para sempre?
Vicente – Eu nunca precisei de filhos até agora. Você também não, certo? Então, qual é o problema?
Pedro – Seríamos todos condenados a viver em um mundo de velhos, presos em corpos de jovens. Um mundo estagnado, onde a evolução não teria mais lugar.
Vicente – A evolução nem sempre é algo bom.
Delphine – Especialmente quando se evolui para o pior.
Pedro – Não. A vida deve permanecer um ciclo. Um círculo, se preferirem. Não uma linha reta infinita que não leva a lugar algum.

Os desafios ambientais

Em praticamente todas as peças de Jean-Pierre Martinez dentro do gênero da ficção científica, a ênfase está na responsabilidade do ser humano, que conseguiu destruir seu ambiente e seu planeta.

Na peça Depois de Nós, o Dilúvio!, os personagens fazem um balanço amargo e desesperado da presença humana na Terra e das catástrofes que resultaram disso.

Eurídice – A Terra era um paraíso. Esse inferno, fomos nós que o criamos.
Orfeu – Nenhum pedaço de gelo… Nenhuma gota de água doce… Nenhuma terra firme onde pisar… E essa temperatura que não para de subir. O processo já foi desencadeado. Desta vez, é irreversível…
Eurídice – Deveríamos ter parado essa máquina infernal muito antes.
Orfeu – Sim… mas agora é tarde demais. Precisamos pensar no futuro…
Eurídice – Futuro?
Orfeu – Quer queiramos ou não, este é o fim do nosso mundo. A única coisa que ainda podemos esperar é salvar nossa pele.
Eurídice – Provocamos a extinção de todos os animais que viviam neste planeta. Agora é a nossa vez. Somos os últimos exemplares de uma espécie em extinção. E se morrermos sem descendência, a humanidade morrerá conosco.

Para mais informações sobre esse tema, consulte o artigo dedicado à ecologia no teatro de Jean-Pierre Martinez.

A busca pela Humanidade

A humanidade merece ser salva? Essa questão está no centro da peça Depois de Nós, o Dilúvio!.

Adão – E se esse planeta habitável já fosse habitado?
Eurídice – Habitado?
Eva – Por seres inteligentes.
Orfeu – Se for o caso, provavelmente é uma civilização primitiva. Não observamos nenhum sinal de vida evoluída. Ondas de rádio, satélites artificiais, megacidades emitindo luz ou calor…
Adão – Talvez sejam ecologistas…
Orfeu – Ou selvagens.
Adão – Selvagens?
Eva – Quando vemos o que os espanhóis fizeram com os incas ao chegar à América… Sim, talvez haja uma perspectiva de salvação. Mas a que preço? Concordo com Adão, é preciso fazer a pergunta: a espécie humana merece ser salva?
Adão – O melhor serviço que poderíamos prestar ao mundo seria impedir que isso acontecesse.

Na peça Fora de Jogo, dois extraterrestres são enviados para determinar se os terráqueos merecem continuar existindo ou se a Terra pode ser transformada em um lixão. Eles sequestram franceses para entender o que torna a vida digna de ser vivida: o amor, o humor, a gastronomia, o futebol…

Essa questão também aparece no sketch Efeitos Secundários, em que dois personagens sofrem os efeitos colaterais de uma vacina e se transformam em um lobo e uma ovelha.

O compromisso político e a crítica social

Reflexão sobre o poder

A denúncia do poder do dinheiro em Depois de Nós, o Dilúvio
“Se a humanidade tivesse se preocupado um pouco mais com a filosofia do que com o lucro, não estaríamos nessa situação… Foi por egoísmo e ganância que o homem cortou o galho no qual estava sentado.”

Denúncia das sociedades opressivas

A peça Quarentena se passa em uma sociedade distópica onde rir é proibido.

Dom – Faço parte de um grupo.
Pat – Um grupo terrorista?
Dom – Sim, se quiser chamar assim. Temos reuniões secretas. Contamos piadas e rimos. Ou pelo menos tentamos…
Pat – Piadas de loucos?
Dom – É preciso ser louco para zombar das autoridades? Ou mesmo do Líder Supremo…
Pat – Mas criticar as autoridades é proibido, não é? E faltar ao respeito com o Líder Supremo é uma blasfêmia.
Dom – Houve um tempo em que a blasfêmia era permitida.
Pat – Como você sabe disso?
Dom – Encontramos livros.
Pat – Livros?
Dom – E jornais também.
Pat – O que é isso?
Dom – São como tablets, mas os caracteres são impressos em tinta preta sobre papel.
Pat – Como nos embrulhos?
Dom – E como não são distribuídos em uma rede, é impossível controlá-los.
Pat – E, claro, são proibidos.
Dom – Houve um tempo em que não eram… Era outra época.
Pat – Não me lembro.
Dom – Uma época que todos esqueceram. As autoridades fizeram de tudo para isso. Queimaram todos os livros, por exemplo.
Pat – O riso…
Dom – Diziam que era próprio do ser humano. O que o distinguia dos animais sociais, como as abelhas, as formigas ou os cupins…
Pat – Ainda temos a inteligência.
Dom – Mas… por quanto tempo mais? Os professores viraram treinadores. Os políticos, reformadores. Os informáticos, organizadores e, em breve, apenas computadores…

 

Reflexão social sobre as desigualdades e a justiça

Na peça Déjà Vu, um casal “reciclado” deve substituir um homem e uma mulher considerados obsoletos pelo sistema.

(Ela desliga o telefone.)
Homem 2 – Então?
Mulher 2 – É do Ministério do Ser ou Não Ser.
Homem 2 – Ah, sim… Antes se chamava Ministério do Ser e do Nada, acho.
Mulher 2 – Esses ministérios mudam de nome a cada governo.
Homem 2 – E então?
Mulher 2 – Eles dizem que somos nossos próprios substitutos…
Homem 2 – Como assim, nossos substitutos?
Mulher 2 – Eles analisaram nosso dossiê. Não somos eficientes o suficiente. Não trabalhamos mais. Não consumimos o suficiente. Ficamos doentes com muita frequência. E nossa pegada de carbono é desastrosa.
Homem 2 – E então?
Mulher 2 – Vão nos substituir.

Através de suas peças e sketches, Jean-Pierre Martinez renova, com humor e ironia, o gênero do teatro de ficção científica, oferecendo perspectivas originais sobre a condição humana, a sociedade e as convenções do gênero.

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